O SIRESP e os helicópetros Kamov continuam envoltos em polémica. Mas há mais legado do Costa MAI
Ministro da Administração Interna (MAI) entre março de 2005 e maio de 2007, António Costa prometeu, na primeira entrevista nesse cargo, “alterar estruturalmente as coisas que têm de mudar”. Em meia legislatura, tomou decisões cujas consequências se prolongaram por muito tempo — nalguns casos, até hoje. A compra do SIRESP e dos helicópteros Kamov foram provavelmente as suas piores decisões. A sua “grande reforma da segurança interna” teve aspetos bem-sucedidos, como a criação da Autoridade Nacional de Proteção Civil, e fiascos como o Sistema Integrado de Segurança Interna, que à época alimentou grandes polémicas e se tornou uma quase irrelevância. Eis o essencial da herança de Costa enquanto esteve no ministério que queima:
SIRESP
O Sistema Integrado das Redes de Emergência e Segurança de Portugal (SIRESP), negociado e assinado por António Costa e pelo seu então subsecretário de Estado Fernando Rocha Andrade (hoje secretário de Estado dos Assuntos Fiscais), foi adjudicado em junho de 2006 pelo valor de €485,5 milhões a um consórcio liderado pela Motorola e que incluía três siglas que se tornaram tóxicas: PT, BES e SLN (a holding do BPN). A história do SIRESP começa no segundo Governo de Guterres, passa pelos Executivos de Durão e de Santana, tendo mesmo sido assinado um contrato em 2005, por Daniel Sanches, quando o executivo santanista já estava em gestão. Mas esqueça esse contrato: foi anulado pelo Governo Sócrates com base num parecer da PGR.
Costa podia ter deitado o negócio ao lixo, admitiu mesmo “anular todo o concurso”, mas não o fez. “Poderia e deveria ter dito ‘não’ na altura em que assinou o contrato; não teve a coragem devida”, acusou esta semana o BE. Um ano depois de anular o acordo de Sanches, Costa celebrava outro, com o mesmo consórcio, que poupava €53 milhões em relação ao original — mas não era um desconto; era mais barato porque o serviço era pior. Por coincidência, do outro lado da negociação, no escritório de advogados que representava a Motorola, estava Lacerda Machado (mas o “melhor amigo” de Costa nega qualquer envolvimento no caso). Os problemas do SIRESP são conhecidos: custou demasiado (em 2008, o líder do grupo de trabalho que idealizou o sistema assegurou que o custo do SIRESP era cinco vezes o que estava previsto) e falha quando é mais preciso. E continua a sorver dinheiro: não só o anterior Governo fez investimentos avultados em equipamento e meios, para suprir deficiências, como até 2021 falta pagar quase €200 milhões do valor total.
Costa podia ter deitado o negócio ao lixo, admitiu mesmo “anular todo o concurso”, mas não o fez. “Poderia e deveria ter dito ‘não’ na altura em que assinou o contrato; não teve a coragem devida”, acusou esta semana o BE. Um ano depois de anular o acordo de Sanches, Costa celebrava outro, com o mesmo consórcio, que poupava €53 milhões em relação ao original — mas não era um desconto; era mais barato porque o serviço era pior. Por coincidência, do outro lado da negociação, no escritório de advogados que representava a Motorola, estava Lacerda Machado (mas o “melhor amigo” de Costa nega qualquer envolvimento no caso). Os problemas do SIRESP são conhecidos: custou demasiado (em 2008, o líder do grupo de trabalho que idealizou o sistema assegurou que o custo do SIRESP era cinco vezes o que estava previsto) e falha quando é mais preciso. E continua a sorver dinheiro: não só o anterior Governo fez investimentos avultados em equipamento e meios, para suprir deficiências, como até 2021 falta pagar quase €200 milhões do valor total.
KAMOV
Na história de Costa-MAI, é o outro caso de estudo. O negócio dos Kamov continua envolto em suspeitas, reacendidas em fevereiro de 2016, quando a ‘Operação Crossfire’ trouxe novas investigações sobre os contratos de compra e manutenção dos helicópteros de combate a incêndios. A PGR confirmou esta semana ao Expresso que o processo continua em investigação, e sob segredo de justiça, estando em causa suspeitas de crimes de corrupção, participação económica em negócio, falsificação e prevaricação.
Depois dos fogos de 2003 e 2005, a pressão para Portugal adquirir meios aéreos de combate a incêndios tornou esse desfecho inevitável. A consultora Roland Berger já tinha estudado o caso, a pedido de Santana, e recomendou a compra de aviões anfíbios (tipo Canadair) e o aluguer de helicópteros. Costa escolheu outro caminho: adquiriu seis helicópteros pesados Kamov, de fabrico russo, por €42 milhões (mais IVA), e quatro helicópteros ligeiros franceses Ecureuil B-3 (€2,2 milhões, mais IVA). Antes de chegarem, os helis já eram um problema — deviam ter sido entregues entre janeiro e setembro de 2007, mas nenhum prazo foi cumprido. Os atrasos nas entregas oscilaram entre mais de dois anos e três anos e meio. Com uma agravante: a entrega foi feita “sob reserva”, ou seja, os aparelhos não estavam prontos a utilizar, o que obrigou a esperar mais 22 a 36 meses... Apesar do atraso, e quando o fornecedor Heliportugal já estava em incumprimento, Rocha Andrade (personagem central outra vez neste caso) toma uma iniciativa que fez levantar os cabelos aos juízes do Tribunal de Contas: aligeirou as penalizações à empresa pela entrega tardia, ao mesmo tempo que aceitou pagar mais cedo. O TC, que em 2015 fez um relatório arrasador sobre o caso, escreveu preto no branco que o subsecretário de Estado “não acautelou o interesse público”. Pior: as multas que aplicou ao fornecedor foram apenas 14,9% do valor que podia ter aplicado. E há mais: o atraso na entrega obrigou o Estado a alugar meios aéreos cujos custos poderiam ter sido poupados. Com a agravante de que, em 2007, o fez por ajuste direto, alegando “urgência”.
O negócio ruinoso não acaba aqui: segundo o TC, a Empresa de Meios Aéreos, criada por Costa para gerir esta frota, não só era um caso de despesismo, falta de controlo e ineficácia, como também não acautelou o dinheiro público na manutenção das aeronaves, assegurada pela Heliportugal — pagou €22 milhões a mais, por horas de voo que nunca aconteceram. E é bom lembrar que parte dos aparelhos passou mais tempo avariada do que a combater incêndios (em 2015, quando arrancou a época de fogos, só um Kamov estava operacional...).
PROTEÇÃO CIVIL
A Autoridade Nacional de Proteção Civil foi provavelmente a reforma mais duradoura dos dois anos de Costa no MAI. Os bombeiros e a proteção civil já tinham sido fundidos na mesma estrutura, mas Costa mudou-lhe o nome e a arquitetura. Foi muito criticado à época, sobretudo pelos bombeiros, que ficavam sob o comando operacional da proteção civil, mas o Governo PSD-CDS limitou-se a fazer pequenos acertos. Um deles tem dado que falar: Miguel Macedo criou um nível de comando que não existia no desenho original, os CADIS (comandantes de agrupamentos de distritos), que a atual chefia da ANPC quer extinguir.
DGV
Costa extinguiu a DGV e dividiu-a em duas: Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) e Instituto de Mobilidade e Transportes (IMTT). Há anos que o resultado é contestado, sobretudo pela crónica falta de meios e de verbas dos dois organismos. Para os cidadãos, o primeiro efeito desta reforma foram os atrasos na emissão de cartas de condução. Em 2008, não havia jornal que não escrevesse sobre o “caos” que se tinha abatido sobre o sistema. O outro efeito, este mais popular, foi a dificuldade da ANSR em notificar e cobrar multas, com as prescrições a disparar.
GUARDA FLORESTAL
Foi António Costa quem ditou o fim dos guardas florestais. Criados na tutela do Ministério da Agricultura, passaram para o MAI em 2006, sendo integrados no Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente da GNR. Era um corpo civil numa força de natureza militar, e esse era só o primeiro dos problemas denunciados pelos guardas florestais, que se viam como uma espécie de GNR de segunda. A formação e missão das duas forças não eram coincidentes, além de que a Guarda Florestal enquanto tal, deixando de ser uma carreira autónoma, ficava com os dias contados. Em 2015, mesmo antes de ser substituído, o anterior Governo contrariou esse fim anunciado, reconhecendo a “especificidade das competências dos guardas-florestais” e dando-lhes um estatuto específico. O atual secretário de Estado disse em 2016 que a carreira de guarda-florestal “deixou de ter qualquer tipo de continuidade”, mas os incêndios deste ano reabriram o debate.
CONTRATAÇÃO DE POLÍCIAS
Costa fez do congelamento de novas admissões na PSP e na GNR uma bandeira, apresentando ao país o que seria um ovo de Colombo: pôr nas ruas, em ações de policiamento, os agentes de segurança que cumpriam funções administrativas, substituindo-os, à secretária, por funcionários públicos preteridos por outros serviços. Costa chamou-lhe “reorientação de efetivos”, e seriam 6600 os reorientados. E assim anunciou, em 2007, o congelamento de quatro concursos para as forças de segurança, em 2008 e 2009 — prometia poupar €131 milhões de euros, para investir em instalações e equipamentos. A falta de polícias passou a ser tema de combate político, reforçada pelos números da criminalidade, que voltaram a subir (foi a época de ouro do carjacking). Mas o MAI já não era Costa. Sucedeu-lhe Rui Pereira que, em março de 2008, anunciou abertura de dois concursos para a incorporação de mil efetivos na PSP e mil na GNR. O soundbite “reformar sem gastar” foi por água abaixo. Foi preciso um financiamento na ordem dos €65 milhões
Artigo publicado na edição do Expresso de 07/07/2017