segunda-feira, 22 de agosto de 2016


O Fisco faz António de Oliveira Salazar corar


Em qualquer país democraticamente saudável e civicamente desenvolvido, esta notícia suscitaria indignação e repulsa: o Fisco (agora, gentil e burocraticamente, designado pelo acrónimo “AT”, de Autoridade Tributária) vai poder ter acesso às contas bancárias de todos os portugueses. Porque são suspeitos de evasão fiscal? 

Porque são suspeitos da prática de ilícitos criminais, como branqueamento de capitais ou ocultação de bens para efeitos tributários? Não. O Fisco pode ter acesso às suas contas bancárias porque…sim. Porque lhe apetece. Porque suspeita que o senhor, caríssimo leitor, é um potencial criminoso. Um potencial faltoso. Um potencial burlão sistemático e doentio do fisco. E critérios objectivos para que o fisco possa conhecer as contas bancárias dos contribuintes portugueses? Não há: basta o fisco querer.

O legislador português – composta por inúmeras cabeças bem iluminadas – não quer saber de direitos fundamentais, de posições jurídicas subjectivas dos contribuintes – tudo isso é “palavreado fora de moda”, como nos contou um jovem deputado em exercício de funções. O que interessa é reforçar o saldo da AT – incrementar as receitas fiscais do Estado a todo o custo. Há défice? O Estado aumenta irresponsavelmente as suas despesas e a sua dívida? Não se preocupem: enquanto persistirem portugueses, trabalhadores e honestos, haverá sempre dinheiro para ir pagando os vícios do Estado. Se aumenta o défice, o Estado aumenta impostos e reforça o Fisco, ou melhor, a AT (sim, cuidadinho, estamos perante uma “Autoridade”…uma “Autoridade Tributária”,atenção!). Se aumenta a dívida, o Estado aumenta impostos e reforça a AT. Se diminui o défice, o Estado aumenta os impostos na mesma e reforça ainda mais a AT.

A Autoridade Tributária é actualmente, não uma entidade administrativa integrada no pdoer executivo, mas um verdadeiro poder do Estado. O princípio da separação de poderes precisa de urgente remodelação dogmática e prática: para além dos poderes legislativo, executivo e jurisdicional, impõe-se acrescentar, nas sociedades contemporâneas, o poder tributário. Poder tributário que é mais forte do que qualquer outro poder – e pelo facto de os cidadãos (e, em particular, os juristas) ainda ignorarem a sua dimensão de poder estatal autónomo, as ameaças mais graves aos direitos fundamentais dos cidadãos vêm precisamente do fisco. Tudo pelo fisco, nada contra o fisco – o cidadão não é sujeito de direitos. É apenas objecto das necessidades, angústias e desejos da AT.

Se George Washington, Benjamin Franklin ou Thomas Jefferson devem dar voltas, voltas e revoltas no túmulo: se acordassem e vissem no “monstro” em que se transformou a máquina fiscal e o instrumento de opressão que é hoje o Direito Fiscal (as suas formulações, mas essencialmente – e infelizmente – a sua concretização) teriam certamente vontade de liderar uma nova revolução. Por muito menos, os “pais fundadores” protagonizaram a revolta contra a monarquia inglesa que conduziu à criação dos Estados Unidos da América – terra da liberdade, do poder do, para e pelo povo.  No taxation without representation – proclamavam os revolucionários americanos contra as arbitrariedades da colonizadora Inglaterra face aos direitos dos habitantes das colónias da América do Norte. Hoje, impõe-se que proclamemos, sem medo e em defesa dos nossos direitos, que “no taxation with misrepresentation” – não há taxação com uma deficiente representação. Deficiente representação destes pobres (de espírito e de intelecto) políticos que permitem tamanha monstruosidade, que são cúmplices dos atentados às liberdades individuais dos portugueses que são sistematicamente cometidos pelo Fisco. Atentados a que, agora, o poder legislativo e executivo vêm dar cobertura legal. Uma vergonha a todos os títulos.

É mais uma prova da ilimitada boa-fé do Estado Português: este Governo aproveita o facto de os portugueses estarem a “banhos” para lançar uma notícia deste teor, havendo já um anteprojecto legal do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (aquele que praga a moralidade aos contribuintes, mas que vai à bola e à borla, com muita “energia positiva”!) que vai mesmo permitir ao Fisco o levantamento do sigilo bancário de todos os portugueses. Apenas porque sim. Estes pobres responsáveis políticos nem sequer percebem o retrocesso civilizacional que tal medida representa. Nem o Professor António de Oliveira Salazar teria coragem de ir tão longe! Oliveira Salazar, no seu túmulo em Santa Comba Dão, deve estar certamente envergonhado consigo mesmo: como não se lembrou desta medida, a um tempo, tão simples e tão radical? Afinal, são os socialistas, comunistas e bloquistas, no Portugal democrático, que aprovam o maior atropelo aos direitos dos cidadãos portugueses – levantar o sigilo bancário…porque sim! Porque o fisco suspeita que pode “sacar” mais uns euros aos contribuintes!

Há que dizer basta. Impõe-se que haja, de uma vez por todas, na política portuguesa, alguém (um partido, deputados, …) que defende os direitos individuais dos portugueses. Que defenda e valoriza a liberdade – que saiba que o Fisco não é um poder ilimitado. Antes, encontra-se limitado pela Constituição, a que deve respeito, como qualquer outro poder do Estado. A soberania não reside no Fisco: a soberania reside no povo português. Não é o povo que serve o Fisco – é o Fisco que serve o povo português. Sim, caros leitores, entre nós, hoje, o Estado é o problema.

O problema que viola, sem tino, os seus direitos fundamentais mais elementares. Há que romper com este “autoritarismo fiscal, imediata e incondicionalmente. Não há receita do Estado que justifique a humilhação, o vexame e a opressão a que os cidadãos são sujeitos pelo poder tributário. Portugal é um país secular, uma Nação valente, uma realidade cultural inigualável. Portugal não é – nem será! – uma enorme repartição de finanças, onde o fisco põe e dispõe. Nada contra os funcionários das finanças (até porque apenas cumprem ordens superiores) – tudo pelos nossos direitos fundamentais. Tudo pela nossa liberdade. Falta cumprir Abril…ou melhor, Novembro! 

João Lemos Esteves. In SOL. 18 de agosto 2016.

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