O Fisco faz António de Oliveira Salazar corar
Em qualquer país
democraticamente saudável e civicamente desenvolvido, esta notícia suscitaria
indignação e repulsa: o Fisco (agora, gentil e burocraticamente, designado pelo
acrónimo “AT”, de Autoridade Tributária) vai poder ter acesso às contas bancárias
de todos os portugueses. Porque são suspeitos de evasão fiscal?
Porque são
suspeitos da prática de ilícitos criminais, como branqueamento de capitais ou
ocultação de bens para efeitos tributários? Não. O Fisco pode ter acesso às
suas contas bancárias porque…sim. Porque lhe apetece. Porque suspeita que o
senhor, caríssimo leitor, é um potencial criminoso. Um potencial faltoso. Um
potencial burlão sistemático e doentio do fisco. E critérios objectivos para
que o fisco possa conhecer as contas bancárias dos contribuintes portugueses?
Não há: basta o fisco querer.
O legislador
português – composta por inúmeras cabeças bem iluminadas – não quer saber de
direitos fundamentais, de posições jurídicas subjectivas dos contribuintes –
tudo isso é “palavreado fora de moda”, como nos contou um jovem deputado em
exercício de funções. O que interessa é reforçar o saldo da AT – incrementar as
receitas fiscais do Estado a todo o custo. Há défice? O Estado aumenta
irresponsavelmente as suas despesas e a sua dívida? Não se preocupem: enquanto
persistirem portugueses, trabalhadores e honestos, haverá sempre dinheiro para
ir pagando os vícios do Estado. Se aumenta o défice, o Estado aumenta impostos
e reforça o Fisco, ou melhor, a AT (sim, cuidadinho, estamos perante uma
“Autoridade”…uma “Autoridade Tributária”,atenção!). Se aumenta a dívida, o
Estado aumenta impostos e reforça a AT. Se diminui o défice, o Estado aumenta
os impostos na mesma e reforça ainda mais a AT.
A Autoridade
Tributária é actualmente, não uma entidade administrativa integrada no pdoer
executivo, mas um verdadeiro poder do Estado. O princípio da separação de
poderes precisa de urgente remodelação dogmática e prática: para além dos
poderes legislativo, executivo e jurisdicional, impõe-se acrescentar, nas
sociedades contemporâneas, o poder tributário. Poder tributário que é mais
forte do que qualquer outro poder – e pelo facto de os cidadãos (e, em
particular, os juristas) ainda ignorarem a sua dimensão de poder estatal autónomo,
as ameaças mais graves aos direitos fundamentais dos cidadãos vêm precisamente
do fisco. Tudo pelo fisco, nada contra o fisco – o cidadão não é sujeito de
direitos. É apenas objecto das necessidades, angústias e desejos da AT.
Se George
Washington, Benjamin Franklin ou Thomas Jefferson devem dar voltas, voltas e
revoltas no túmulo: se acordassem e vissem no “monstro” em que se transformou a
máquina fiscal e o instrumento de opressão que é hoje o Direito Fiscal (as suas
formulações, mas essencialmente – e infelizmente – a sua concretização) teriam
certamente vontade de liderar uma nova revolução. Por muito menos, os “pais
fundadores” protagonizaram a revolta contra a monarquia inglesa que conduziu à
criação dos Estados Unidos da América – terra da liberdade, do poder do, para e
pelo povo. No taxation without representation – proclamavam os
revolucionários americanos contra as arbitrariedades da colonizadora Inglaterra
face aos direitos dos habitantes das colónias da América do Norte. Hoje,
impõe-se que proclamemos, sem medo e em defesa dos nossos direitos, que “no
taxation with misrepresentation” – não há taxação com uma deficiente
representação. Deficiente representação destes pobres (de espírito e de
intelecto) políticos que permitem tamanha monstruosidade, que são cúmplices dos
atentados às liberdades individuais dos portugueses que são sistematicamente
cometidos pelo Fisco. Atentados a que, agora, o poder legislativo e executivo
vêm dar cobertura legal. Uma vergonha a todos os títulos.
É mais uma prova da
ilimitada boa-fé do Estado Português: este Governo aproveita o facto de os
portugueses estarem a “banhos” para lançar uma notícia deste teor, havendo já
um anteprojecto legal do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (aquele que
praga a moralidade aos contribuintes, mas que vai à bola e à borla, com muita
“energia positiva”!) que vai mesmo permitir ao Fisco o levantamento do sigilo
bancário de todos os portugueses. Apenas porque sim. Estes pobres responsáveis
políticos nem sequer percebem o retrocesso civilizacional que tal medida
representa. Nem o Professor António de Oliveira Salazar teria coragem de ir tão
longe! Oliveira Salazar, no seu túmulo em Santa Comba Dão, deve estar
certamente envergonhado consigo mesmo: como não se lembrou desta medida, a um
tempo, tão simples e tão radical? Afinal, são os socialistas, comunistas e
bloquistas, no Portugal democrático, que aprovam o maior atropelo aos direitos
dos cidadãos portugueses – levantar o sigilo bancário…porque sim! Porque o
fisco suspeita que pode “sacar” mais uns euros aos contribuintes!
Há que dizer basta.
Impõe-se que haja, de uma vez por todas, na política portuguesa, alguém (um
partido, deputados, …) que defende os direitos individuais dos portugueses. Que
defenda e valoriza a liberdade – que saiba que o Fisco não é um poder
ilimitado. Antes, encontra-se limitado pela Constituição, a que deve respeito,
como qualquer outro poder do Estado. A soberania não reside no Fisco: a
soberania reside no povo português. Não é o povo que serve o Fisco – é o Fisco
que serve o povo português. Sim, caros leitores, entre nós, hoje, o Estado é o
problema.
O problema que
viola, sem tino, os seus direitos fundamentais mais elementares. Há que romper
com este “autoritarismo fiscal, imediata e incondicionalmente. Não há receita
do Estado que justifique a humilhação, o vexame e a opressão a que os cidadãos
são sujeitos pelo poder tributário. Portugal é um país secular, uma Nação
valente, uma realidade cultural inigualável. Portugal não é – nem será! – uma
enorme repartição de finanças, onde o fisco põe e dispõe. Nada contra os
funcionários das finanças (até porque apenas cumprem ordens superiores) – tudo
pelos nossos direitos fundamentais. Tudo pela nossa liberdade. Falta cumprir
Abril…ou melhor, Novembro!
João Lemos Esteves. In SOL. 18 de
agosto 2016.
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