Golpe do regime na Caixa Geral de Depósitos
01.12.2016 21h25
Estivemos todos a ver o filme ao contrário. A principal razão para a guerra dos últimos meses na Caixa Geral de Depósitos não se deve à recusa dos administradores em entregar as declarações de património. Deve-se à iminência de aplicação de uma nova política de gestão de risco de crédito. Demorei várias semanas a perceber isto, mas agora julgo que tudo ficou muito mais claro. Houve um golpe do regime caduco em que vivemos, que levou à saída de António Domingues e da maior parte dos membros da sua equipa profissional. Já nem Marcelo, nem Costa, nem Catarina, nem Jerónimo, nem Passos, nem Cristas, o queriam no lugar onde estava. Uns por umas razões, outros pelas razões contrárias, estavam unidos no mesmo objetivo – correr com ele.
António Domingues tornou-se demasiado incómodo. Não pelo que fez até agora ou deixou de fazer; mas sim pelo que ia começar a fazer.
E o que ia começar a fazer era cortar créditos de favor aos amigos dos bancos do regime, que sempre viveram de dinheiro fácil. António Domingues ia fazer na CGD o que sempre fez no BPI, mas o Regime político-partidário nacional, que teima em não mudar, cortou-lhe as pernas.
António Domingues saiu consciente disso, ao dizer que foi “vítima de um turbilhão mediático politicamente instrumentalizado: Tudo o que fez a partir de Setembro foi altamente criticado, tudo o que viesse a fazer a seguir seria queimado na praça pública.
Para perceber este complexo golpe do Regime, em que houve ingénuos, falsos ingénuos, idiotas úteis, cabeças maquiavélicas e aproveitadores profissionais de oportunidades alheias, temos de voltar a ver o filme dos últimos nove meses na Caixa Geral de Depósitos.
Ainda no primeiro trimestre do ano, o Governo começou a deixar cair a informação de que os bancos estavam em muito pior situação do que parecia e, além do Banif, havia problemas na Caixa Geral de Depósitos. Era preciso reconhecer mais imparidades e fazer um volumoso aumento de capital.
A Administração anterior, de José de Matos, já tinha ultrapassado o mandato e mostrado várias vezes que queria sair.
A escolha de António Domingues para novo presidente foi revelada pelo Expresso no dia 16 de Abril. Nesse mesmo dia, apurou depois a SIC, o então vice-presidente do BPI enviou por e-mail ao Ministério das Finanças um memorando onde especificava as cinco condições para assumir a presidência da CGD:
-Escolher livremente uma equipa de gestores profissionais sem ligações partidárias;
-Serem todos dispensados de apresentar declarações de património ao Tribunal Constitucional para evitar a exposição pública das respetivas fortunas ganhas nas várias atividades que desenvolveram ao longo da vida profissional antes de chegarem à Caixa;
-Ver alterado por iniciativa do Governo o RGIC, Regime Jurídico das Instituições de Crédito, de forma que vários lugares de administrador dentro do mesmo grupo económico contassem como um só para efeitos de avaliação de idoneidade pelo BCE (para incluir Ângelo Paupério da Sonae e Leonor Beleza da Fundação Champalimaud, o que acabou por não acontecer porque o RGIC nunca foi mudado).
-Ganhar o mesmo que estava a ganhar, no seu caso no BPI, cerca de 420 mil euros anuais acrescidos de prémios de produtividade;
-Estabelecer um pré-acordo com o Governo que lhe permitiria entrar em funções se, e só depois de a DGComp ter aprovado o plano de recapitalização da CGD pelas regras de mercado.
O Ministério de Mário Centeno e Mourinho Félix concordou com estas condições e agiu em conformidade.
Em meados de Maio, o Governo deixava cair a informação de que a necessidade de recapitalização da CGD era superior a 4 mil milhões de euros, para criar a perceção pública da urgência da negociação de uma solução em Bruxelas e Frankfurt; em meados de Junho era aprovado o decreto-lei que retirava a CGD do Estatuto do Gestor Público, promulgado logo a seguir pelo Presidente da República;
Em Julho já decorriam negociações com as instituições europeias a toda a velocidade e na noite de 24 de Agosto as 21 horas era aprovado o plano de recapitalização da CGD pela Comissária Europeia da Concorrência, Margrethe Verstager.
A posse de António Domingues aconteceu a 31 de Agosto de 2016.
Esta é a data que representa o momento de viragem na perceção do papel de António Domingues na CGD. Até aí, era o desejado, o salvador, o Messias; a partir de 31 de Agosto, tudo se complicou.
- A guerra por causa do seu elevado salário subiu de tom e atingiu proporções de escândalo nacional;
- Foi questionada a contratação de duas equipas de assessores para avaliar a situação da Caixa, a consultora multinacional McKinsey e o gabinete de advogados português Francisco Sá Carneiro e Associados, alegadamente por mais de três milhões de euros, quando o valor ficou pouco acima de um milhão de euros;
- Foi divulgada a desobrigação de os novos gestores da CGD apresentarem declarações de rendimento e património no Tribunal Constitucional (Na SIC, por Marques Mendes, que assim prestou um relevante serviço público dado o manifesto interesse da informação).
- Foi acusado de ter tido acesso a informação privilegiada da CGD quando ainda era vice-presidente do BPI, ignorando os acusadores que a informação que usou está nas contas e nos anexos às contas da própria CGD. (António Domingues tinha mesmo chegado a fazer uma conferência na Universidade Católica, a 25 de Janeiro, onde já descrevia ao pormenor o problema das imparidades em todos e em cada um dos grandes bancos incluindo a CGD).
Mas um conjunto de manifestas fragilidades ou erros no acordo entre o gestor e o Governo, que já tinham tido paralelo no caso da colaboração entre o advogado Diogo Lacerda Machado e o seu amigo António Costa e que acabaram por ser resolvidas de forma relativamente fácil, neste caso alimentaram uma polémica crescente que nunca mais parou até levar à saída do gestor e da maior parte da sua equipa.
Porquê?
Por causa de uma não entrega de declaração de património no Tribunal Constitucional?
Não parece ser o caso, uma vez que o próprio sempre disse que cumpriria a Lei. Primeiro ia argumentar razões para a dispensa junto do TC e, se este insistisse, acabaria por entregar a declaração, o que curiosamente acabou por fazer no momento da saída, ele e outros administradores como Pedro Norton…
Porquê então tanta polémica?
Porque é que o CDS e o PSD vieram exigir a entrega imediata da declaração e Pedro Passos Coelho entrou mesmo numa guerra pessoal com António Domingues acusando-o de estar a atirar areia para os olhos dos portugueses?
Porque é que uma parte do PS liderada por Carlos César, o PCP e o Bloco de Esquerda vieram a público fazer um ultimato ao gestor e à sua equipa?
Porque é que António Costa disse sibilinamente que entregou sempre a sua declaração ao Tribunal Constitucional?
Porque é que o Presidente da República se veio imiscuir numa questão de gestão corrente de assuntos de governação emitindo mesmo uma nota a sugerir uma iniciativa legislativa para obrigar à entrega da declaração sem apelo nem agravo (depois de ele próprio ter promulgado o novo Estatuto do Gestor Público)?
E porque é que o discreto e sinuoso presidente da Associação Portuguesa de Bancos, Faria de Oliveira, o banqueiro conhecido há muito por fazer a ligação entre a Banca e a Política em Portugal, sentiu necessidade de vir a público falar de um “ruído ensurdecedor profundamente negativo” e dizer que “é chegada a hora de pôr um ponto final em todas estas questões”, acrescentado que “a interpretação da lei apontará nesse sentido” (da obrigação de entrega das declarações de património)?
Parecia complicado, mas afinal é simples perceber o porquê da viragem da perceção de António Costa, de Marcelo Rebelo de Sousa e de outros responsáveis políticos sobre o papel de António Domingues na Caixa Geral de Depósitos.
Por causa do que ele tem andado a fazer desde que assumiu funções. Por ter posto toda a máquina gigantesca da Caixa a trabalhar para detetar as suas próprias ineficiências e para construir as bases de um novo Plano Estratégico de Médio Prazo
Envolveu todos os diretores em reuniões sucessivas para avaliar as zonas de risco dos créditos da Caixa ao cêntimo e começou a desenhar um plano para resolver um problema que se aproxima dos 7 mil milhões de euros de créditos em risco.
As conclusões do Estudo sobre a real situação da CGD mostram que este não é um banco das PME: é um banco no qual pouco mais de três dúzias de grandes clientes concentram mais de três quartos do crédito concedido às empresas.
Mas está escrito no novo plano Estratégico da CGD até 2020 que as regras da concessão de novos créditos vão ser muito mais apertadas, a recuperação de créditos em incumprimento vai ser muito mais agressiva, vão aumentar os pedidos de reforço de garantias aos empréstimos concedidos no passado e vão ser reduzidos os financiamentos correntes às empresas e aos grupos económicos com maior risco.
Por causa deste plano, os gestores dos grandes grupos económicos que devem centenas de milhões de euros à Caixa e continuam a precisar de injecções permanentes de financiamento ficaram muito preocupados.
As exigências de novas garantias aos créditos concedidos vão aumentar; as diligências para recuperar pagamentos em atraso vão apertar;
Os financiamentos correntes vão secar:
Os novos créditos vão desaparecer para alguns dos beneficiados do Regime.
E podemos pôr nomes nestes grandes devedores à CGD: Grupo Lena, José Berardo, Grupo EFACEC de Isabel dos Santos, Vale do Lobo, grupo Artlant (La Seda), Auto Estradas do Douro Litoral do Grupo Mello, que também tem outros créditos da CGD, Grupo António Mosquito dono do DN e JN, etc., etc.
Os políticos que gravitam em relação de proximidade (e em muitos casos de promiscuidade) com os grandes grupos económicos perceberam rapidamente o filme: se a CGD apertar a malha do controlo do crédito concedido, exigindo novas garantias, e cortar financiamentos correntes e novos créditos, muitos grupos económicos que se encontram num limbo de pré-insolvência podem entrar numa zona de clarificaçao acelerada, ser obrigados a fechar empresas, despedir pessoal, vender activos e, no fim da linha, os seus donos e gestores que ainda são muito influentes podem perder muito poder.
Estas serão as consequências da nova política de gestão de risco de crédito que está incluida no novo plano estratégico da CGD, terminado por António Domingues há poucas semanas e entregue no Ministério das Finanças, negociado na Direcção Geral da Concorrência Europeia e em fase de negociação com o Banco Central Europeu.
Mas as consequências não se ficam por aqui.
Se a CGD aplicar mesmo esta nova política de gestão de risco do crédito, os critérios que usar vão ter de ser seguidos pelos outros bancos, em espelho: terão de apertar os mecanismos de recuperação de malparado, redobrar exigências de garantias e, em consequência, de reconhecer mais imparidades, resolver mais situações de pré-falência e reclamar mais colateriais. De caminho vão aumentar as falências e o desemprego. O efeito a médio e longo prazo será muito mais benéfico para a economia porque os bancos vão fazer reentrar esses colaterais no ciclo económico produtivo.
Mas no curto prazo os indicadores económicos mais sensíveis vão piorar.
E o problema político é o curto prazo.
Como é que António Costa pode gerir esta transição profunda e traumática da relação entre a finança e o mundo empresarial num ano de eleições autárquicas e com uma frágil base de apoio parlamentar de esquerda ao seu Governo?
Como é que Marcelo Rebelo de Sousa vai gerir um país de afetos fáceis a mergulhar novamente em crispação, pessimismo e recriminações?
No centro deste complexo golpe do regime político-partidário caduco em que vivemos houve um comportamento que foi determinante para que o o golpe do Regime na Caixa tivesse sucesso – o cinismo.
O notável cinismo de uma classe política que ousa aparecer em público a defender um conjunto de objetivos e que na sombra desfere golpes de mestre para os destruir e conseguir alcançar outros objetivos exatamente contrários aos primeiros.
Que fina e orientada inteligência existe por detrás deste cinismo!
Visto de uma perspetiva unicamente estética, o cinismo político é como a grande música ou as equações matemáticas: evolui em espirais belas e harmoniosas. Neste caso, perigosamente destrutivas.
Na verdade, em muitas cabeças de esquerda (e talvez acima) cresceu a ideia maquiavélica de que António Domingues era excelente para conseguir luz verde da Europa para a recapitalização pública da CGD (sem ter de passar por uma resolução que cortasse os depósitos acima de 100 mil euros), mas tinha de ser descartado logo a seguir – o que acabou por acontecer.
Na direita do CDS e sobretudo no PSD, que até contribuiu decisivamente para derrubar o anterior Dono Disto Tudo, acendeu-se a luz da facilidade de fazer oposição despedindo um banqueiro fragilizado. Acabando a direita por contribuir para o mesmo objetivo da esquerda.
Problema maior para a nova administração da CGD que, se as negociações para formar equipa correrem bem deverá ser presidida por Paulo Macedo depois do convite de António Costa:
Paulo Macedo terá de invocar a sua paciência de chinês e a sua habilidade de mestre da conjugação dos impossíveis para afinar na mesma orquestra os humores sensíveis dos grandes empresários zombies, a pressão do Governo para não cortar a direito tão depressa e a exigência do BCE e da Comissão Europeia para a Caixa ser muito mais rigorosa na concessão de crédito e muito mais dura na recuperação do que já foi atribuído.
Essa exigência está escrita no acordo com as instituições europeias e é condição sine qua non para a recapitalização pelas regras de mercado ser concretizada com dinheiro exclusivamente dos contribuintes portugueses.